terça-feira, 6 de agosto de 2013

GRAMADOELAS, O PRIMEIRO RESTAURANTE A DESAFIAR O APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL, SERVE SUA ÚLTIMA REFEIÇÃO E FECHA AS PORTAS, APÓS 40 ANOS


 Edição:Adilson Gonçalves
Fonte Agência Efe
O histórico Gramadoelas de Johanesburgo, o primeiro grande restaurante que desafiou o regime do apartheid permitindo a entrada de clientes negros, serviu pela última vez seu célebre buffet pan-sul-africano e fechou as portas.
Eduan Naudé, um dos sócios do Gramadoelas,
posa com uma fas fotos históricas do restaurante
Sua aposta contra a segregação racial chegou quase por acaso, depois que o governo sul-africano da época do regime segregacionista não respondeu ao telefonema do restaurante que pedia autorização para a reserva de um grupo de políticos norte-americanos que incluía negros.
Os proprietários se aventuraram a atender os clientes, e a falta de resposta oficial do regime racista do apartheid a sua transgressão lhes deu confiança para permitir a entrada de pessoas de qualquer raça.
Odwan Naudé, dono e fundador do estabelecimento, que fechou no último mês de julho após mais de quatro décadas com as fornalhas acesas, recorda:
— Se, de maneira excepcional, quiséssemos servir a pessoas negras ou mulatas, deveríamos entrar em contato com Pretória para pedir permissão.
"Em uma ocasião, tivemos uma reserva de um grupo de políticos norte-americanos, alguns deles negros, mas ninguém atendia no telefone de Pretória", relata Naudé, que junto a seu sócio e companheiro sentimental, Brian Shalkoff, decidiram tentar a sorte.
"A polícia não interveio e, a partir daquele dia, abrimos as portas a todos. Acho que fomos os primeiros", conta o empresário.
Mas o Gramadoelas, que serviu personalidades como a rainha Elizabeth II da Inglaterra e o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, também é famoso pelo citado buffet pan-sul-africano, que abrange todas as tradições culinárias que convivem no país.
ssa singularidade, junto à decoração de época, transformou o restaurante, ao longo de sua trajetória, em um dos locais que melhor reflete a diversidade da África do Sul.
"Fomos os primeiros a oferecer toda a culinária sul-africana", diz com satisfação Naudé, que, apesar de seus 82 anos, lamenta ter de fechar seu restaurante.
A vida desse mítico local chega ao fim com o vencimento da concessão do espaço que ocupa no famoso Market Theatre, no centro de Johanesburgo.
Fundado em 1967 no bairro de Hillbrow, o Gramadoelas - que significa "lugar remoto" no idioma afrikaans - cumpriu amplamente seu objetiv, e recebeu sul-africanos de todas as raças, turistas e celebridades como as atrizes Charlize Theron e Catherine Deneuve.
De todas as ilustres visitas, Naudé lembra especialmente a de Mandela em 1994, antes de sua posse como primeiro presidente negro da África do Sul.
"Veio a um ato grande com Hillary Clinton no teatro, no qual nós servíamos a comida", explica.
"Lembro que, embora não estivesse previsto que comeria aqui, entrou no restaurante, chamou todos os funcionários, apresentou-se, felicitou-lhes e agradeceu pela boa comida que haviam servido nas suas visitas anteriores", acrescentou.
A complexa história do país se reflete nos 46 anos de história do restaurante e nas suas paredes, onde estão quadros do holandês pioneiro na África do Sul, Jan van Riebeeck, com utensílios culinários de madeira típicos dos povos africanos.
O fechamento do Gramadoelas deixa órfãos frequentadores das sessões do Market Theatre, que passavam o tempo degustando algumas de suas especialidades enquanto esperavam a próxima sessão da casa de espetáculos.
É o caso do "pescado em escabeche do Cabo", temperado com produtos asiáticos que os escravos malaios trazidos pelos primeiros colonos procedentes da Holanda - dos quais descende o próprio Naudé - introduziram nas cozinhas de seus senhores.
Esse tipo de prato mestiço era, talvez, o mais emblemático do cardápio do restaurante, que também preparava a africâner salsicha boerewors, frango ao curry indiano e pratos negros como o mohodu (tripas).
O fim do Gramadoelas veio acompanhado de uma tragédia.
Brian Shalkoff morreu nesse mês de julho após receber uma brutal surra durante um assalto à casa que dividia com Naudé no centro de Johanesburgo.
Durante uma das últimas noites de serviço no restaurante, Odwan Naudé recebeu os pêsames e emocionantes despedidas dos fiéis clientes que conserva há décadas.
O anfitrião respondeu a todos com excelente educação, sem esconder sua tristeza pelo fechamento e pelo que chama de "a tragédia de Brian".
Naudé também não esconde o orgulho por tudo o que conseguiram juntos com o Gramadoelas, cuja vasta coleção de móveis, talheres e objetos decorativos antigos foi leiloada esta semana no próprio local.
Para trás, ficam mais de quatro décadas de história gastronômica sul-africana, a lembrança indelével de milhares de clientes que degustaram seus manjares e o inevitável pesar de Odwan Naudé.
"Sinto muito que o teatro precise deste espaço - confessa o veterano empresário -, porque teria gostado de continuar uns anos mais...".


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